sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Intermitências da vida

O candeeiro público parece indeciso lá fora. A luz entra intermitente por três frinchas da persiana mal corrida e resume o escuro do quarto a um negro ténue. Sentado na cama, encostado à cabeceira, consigo distinguir as minhas mãos entrelaçadas entre as canelas, mas não os seus traços. Devia dormir. Bastar-me-iam os dedos de uma mão para contar o número de horas que restam até ao nascer do Sol. Mas não consigo dormir. O sono ataca-me, feroz, mas não consegue derrubar-me. Este estado de dormência consciente é demasiado poderoso, não tenho como fugir a estas memórias tão frescas. Não quero fugir-lhes.
Continuo a olhar para as mãos, mas é o infinito que estou agora a focar. Sei que ele me conduzirá a um outro momento, num outro lugar...

Teletransportado. Num piscar de olhos deixei o aconchego dos meus lençóis e voltei ao centro da cidade. Aquela memória era tão recente, tão viva... Sentia o cheiro a tabaco de alguém que fumava perto de mim. O estardalhaço que as conversas faziam à minha volta. A praça era enorme e, ainda assim, estava cheia de gente. Tão bonita aquela praça de pedra, presa num século que não o nosso, protegida pelos leões que se erguiam bem no centro. Achei que nada poderia deslumbrar-me mais. Mas eis que desviei o olhar dos felinos ali esculpidos, virei a cara e vi aquele sorriso. A beleza personificada numa expressão. Percebi que me enganara, nem todas as praças do mundo se lhe poderiam comparar. Vê-la sorrir não era apenas bonito, era mágico. Não sei quanto a todos os outros, mas para mim o tempo desacelerava. Infelizmente, não chegava a parar, apenas se arrastava de um momento para o seguinte em valiosos fotogramas. Pensei que se o céu existe, então não deve estar bem guardado, caso contrário como poderiam ter deixado fugir de lá aquele brilho.
Obriguei-me a parar e esfreguei os olhos com as duas mãos, instintivamente. Quando voltei a abri-los estava de novo no meu quarto.

Aquele brilho...
Procuro a almofada e deito a cara completamente ofuscado.
Aquele sorriso é como canto de sereia. Por mais que tente, por mais que lute, sei que sempre me vence. Posso nega-lo ao mundo, mas ninguém mo nega a mim.
"Quero dormir. Por favor, não brilhes mais...esta noite."

O candeeiro decidiu-se, finalmente.


Jack Pot

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Cartas de escárnio e mal-dizer